quinta-feira, 8 de julho de 2010

tININDO tRINCANDO*

O maior entre os grandes discos nacionais de todos os tempos, a obra-prima Acabou Chorare é fruto de uma experiência coletiva e livre, que tem no samba e no rock suas mais fortes raízes
POR CRISTIANO BASTOS
Em 1823, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva declarou que a crucial diferença entre o Brasil e os outros países cabia em uma única palavra: "amálgama".
No entendimento de Bonifácio, o DNA cultural da nação estaria profundamente amalgamado. Os demais povos teriam "diversidade".
A profusão verde-amarela também é perfeita para entender as razões da atemporalidade do álbum Acabou Chorare, gravado há 38 anos pelos Novos Baianos. Em votação feita com especialistas, em 2007 a Rolling Stone elegeu o disco "o maior da música brasileira de todos os tempos".
Este ano, lançamentos (veja no box) evidenciarão o "bando" que, no fundo, nunca se desfez, e arrebatarão velhos e novos fãs com gravações, filmes e livros. Todos com força para novamente erigi-los ao panteão da memória musical brasileira - da qual, na verdade, nunca foram deletados.
A mais aguardada novidade é o documentário Filhos de João - O Admirável Mundo Novo Baiano, de Henrique Dantas. A produção focaliza a interferência "divina" de João Gilberto, "produtor espiritual", parafraseando o novo baiano Moraes Moreira, sobre os rumos da banda.
E, por outro ângulo, enquadra o segundo capítulo desse encontro que resultou na obra-prima Acabou Chorare. Na última edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o documentário amealhou o Prêmio do Júri Popular e, neste ano, ganha os cinemas nacionalmente.
Jorge Mautner saúda o poderoso amálgama de Acabou Chorare como "o segredo brasileiro". Moraes, um dos fundadores, endossa:
"Os Novos Baianos só foram possíveis por causa da congregação de pessoas. A união fez a música", abrevia o "vaqueiro do som", apelido dado pelo preceptor João Gilberto. Conterrâneo, o múltiplo Tom Zé foi outro deles.
Antigamente, explica Mautner, quando o Brasil ainda não havia descoberto sua identidade cultural, comentava- se que o país fora amaldiçoado por "três raças tristonhas" - negra, indígena e lusitana. Hipótese que, obviamente, ele refuta.
Mas ufaniza: "Os brasileiros são a etnia mais otimista e alegre do planeta!".
Distante daqui, outros pensadores deram-se conta da "verdade tropical". No século 19, o poeta norte-americano Walt Whitman professou que o Brasil seria o "vértice da humanidade" - probabilidade que, a história prova, não passou batida pelo olhar de gênios pátrios da estatura de Villa-Lobos, Mário de Andrade e Ary Barroso.
O amálgama também seduziu outros menos bem-sucedidos, mas banhados em criatividade. Caso do grande compositor, e exímio fracassado, Assis Valente. Em 1940, o carioca teve destreza para criar o samba-exaltação "Brasil Pandeiro" (que prefacia Acabou Chorare) e, inversamente, autenticar a "valentia" sugerida por seu sobrenome.
Endividado, Valente suicidou-se ingerindo uma dose de guaraná e formicida. Até na escolha do veneno celebrou amor à pátria. Assis Valente vende o país como ninguém nos versos de "Brasil Pandeiro": "O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada".

Dá para dizer que cada um dos "lados" do LP Acabou Chorare foi arquitetado em endereços distintos. O A no apartamento em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde os Novos Baianos aquartelavam-se; e o B no sítio-comuna alugado em Jacarepaguá, Zona Oeste.
Na plaqueta em formato de bandeira do Brasil afixada na porteira do sítio, onde se deveria ler "Ordem e Progresso" estava escrito "Cantinho do Vovô". De 1971 a 1975, o combo se resguardou das agruras militares no retiro que também foi lar, estúdio e campo de futebol - três das coisas que mais interessavam a todos ali conjugados.
No Cantinho do Vovô, o samba cinco estrelas dos Novos Baianos pulsava suave, contente e distorcidamente roqueiro.

Acabou Chorare deu o pontapé inicial (verdadeiro "gol de placa") no cast da recém-criada gravadora Som Livre, fundada pelo produtor João Araújo, também conhecido como pai do astro Cazuza.
As gravações deram- se no estúdio fluminense Somil, especializado em áudio para cinema.
Como "centroavantes", o time que tocou no álbum reunia Moraes Moreira (violão-base), Paulinho Boca de Cantor (vocais e pandeiro) e Baby Consuelo (afoxé, triângulo e maracas). Luiz Galvão era o "médium" que decodificava a loucura coletiva em poesia.
Esses quatro são o núcleo-base da banda reunida em Salvador, em 1969.
A armada baiana também arregimentava outros guerrilheiros. O sólido "wall of sound" dos Novos Baianos era cimentado pelo conjunto A Côr do Som, cuja batuta pertencia ao guitarrista Pepeu Gomes.
Em parceria com Moraes, Pepeu cinzeleva os trançados arranjos das canções, além de cuidar da afinação de todos os instrumentos.
A tripulação completava-se com Jorginho (bongô e cavaquinho), Baixinho (bateria e bumbo), Dadi (baixo) e Bolacha (bongô), recentemente falecido. Ainda juntavam-se a eles o dançarino Gatto Felix e o percussionista Charles Negrita.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 46 da Rolling Stone.

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