terça-feira, 30 de março de 2010

sONIC'S rENDEZVOUS: sOFISTICAÇÃO nOISE

Após a pane total da "Motor City Five" os sobreviventes do desvario emecefiveano ainda juntaram forças criativas para zunir a potência sônica de Detroit em várias bandas - e muita barulheira.

A maioria delas segue tão anônima, que se deparar com registros gravados, hoje em dia, é como pisar sobre um refrigerado oásis de som encravado na árida (e morta) sigla "rock pesado".

Em 1970, com a falência do MC5 as moribundas almas que sobraram não tardaram em dar continuidade às suas "carreiras": como o guitarrista Wayne Kramer revela no livro Please Kill Me, um tempo chegou abandonar o rock e foi traficar e roubar (de televisões a carros) para sustentar sua adição em "herô".

Mas Fred "Sonic" Smith, o guitar-hero do protopunk (que deixou viúva a poetisa Patty Smith, em 1994), não ficou parado e, junto com o baixista Scott Morgan - ex-The Rationals e atual The Solution -, montou o supergrupo Sonic's Rendezvous Band.

Criado em 70, em Ann Arbor, Michigan, os Sonic's também tinham em seu line-up o baterista Scott Asheton, ex-Stooges, e o baixista Gary Rasmussen, do UP! (também filiados, como o MC5, ao Partido dos Panteras Brancas comandado por John Sinclair).
Exceto por um punhado de gravações ao vivo, editaram somente um único single: "City Slang". Sem trabalho fixo, em 1978 viraram banda de apoio de Iggy Pop na turnê do disco Kill City.

Muitas foram as "larvas" crescidas do cadáver do MC5. O Sonic's Rendezvous, contudo, legou aulas magnas de como fazer rock sujo, punk, bem tocado e - o melhor - sem clichês.
Os suecos do Hellacopters beberam, claramente, seu rock'n'roll "high energy" na fonte sônica. Tanto que o guitarrista Jens Dalkvist chega a personificar um Fred "Sonic" ainda mais branquelo.
Thurston Moore, guitarrista do Sonic Youth, contou que o Sonic's Rendezvous foi definidor sobre como sua banda deveria soar...

Os álbuns Sweet Nothing (live, 1978) e City Slang (1977) são edições das mais difícieis de se arrumar por aí. Então não marca bobeira: aqueles que se excitam com guitarras flamejantes ardendo nos infernos vão gozar no paraíso.


City Slang (single 1979 + canção secreta)

cITY sLANG

oN sTAGE*


*Fotos by Robert Matheu.

sONIC fLYERS

sábado, 27 de março de 2010

aRTE, lENDA & fÉ

Se a Igreja Católica inspirasse obras tão magníficas quanto certos livros, quadros ou monumentos juro que eu me convertia. Mas não é assim. Na sucessão dos séculos, o "estado da arte católico" tornou-se mais crível do que a própria fé - o que, pelo princípio religioso, está errado.
Não é?
A fé é divina, mas a arte, embora ostente a aura superior dos grandes mestres, tem beleza profana. A arte é Deus&Diabo trabalhando juntos por intermédio do homem. Sagrada ou profana, toda Renascença está guardada sob eterna vigilância dos padres.
Concílio de Trento, Banco do Vaticano, palacetes lambuzados de ouro e sangue, Santas Cruzadas, venda de indulgências, o silêncio do holocausto, Opus Dei. Passado estranho, para cujos pecados é complicado conceder remissão.
Hoje, a cruzada católica contra o ser humano é farmacêutica: fogueira e impalação são coisas do passado. Na proibição da pílula anticoncepcional e do preservativo, o cajado apostólico romano ainda tenta se impor. No final das contas, de pouco adianta.
Dogmas que nunca darão para entender e, na pior das hipóteses, resultam em explosão demográfica, doenças e tristeza sem explicação. Claro que um pouco de educação global também daria aquela mãozona ao mundo.
E, já que o Brasil é um "país católico", a Igreja deveria preocupar-se mais é com a educação, não só extensiva como ostensiva. Se não há grana, o que é uma injúria, que poupem nos milionários sapatos italianos do Bento 16.
Como nada tem só um lado "ruim" (e a questão leva mais do que um purgatório inteiro para ser debatida legitimamente), que, justamente, é uma das boas facetas do catolicismo que gostaria de explorar: a arte.
O que restou de bom no catolicismo pode ser apreciado na produção artística em mais de dois milanos de história pós-Cristo. Tal mostra a história, a arte sobreviveu a tudo: modas, política, egos, enchentes, mecenato e, até mesmo, abalos sísmicos.
Sobreviveu à religião e, muitas vezes, graças à ela.
Na literatura, um livro muito bonito escrito por Charles Dickens (1912/1870), especialmente para os seus filhos, passou 85 anos sem edição porque o caçula do romancista falecera pouco antes do natal de 1833, quando deveria ser publicado. Se lançada nos obscuros tempos do cristianismo, com certeza a obra seria considerada profana - de tão singela.
A Vida de Nosso Senhor (Editora Francisco Alves) é a daptação na qual Dickens refaz com sua prosa popular o nascimento e o calvário de Jesus Cristo; e, feito para os pequeninos, não carrega o angustiante sofrimento com que o desígnio do Salvador sempre é narrado.
Mel Gibson envergonharia-se desse livro.
Dickens pegou a maior história da humanidade e fez com ela o que sabia de melhor, isto é, suavizou-a e, com poesia, enlevou a crueldade que marca a passagem da crucificação de Cristo. Sofrimento que, para os católicos, fez-se necessário para "livrar-nos dos pecados do mundo".
Se bem que versejou por todos nós, os "outros", a poetisa punk Patty Smith: "Jesus died for somebody's sins but not mine" (Jesus morreu pelos pecados de todos, menos os meus).
Arrematei a edição de A Vida de Nosso Senhor num sebo em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, provavelmente "calhau" que restara da disputada Jornada Literária que, anualmente, toma a cidade.
Na ocasião, comprei outros dez títulos, entre os quais, O Baphomet, de Pierre Klossowski (1905/2001). Baphomet é o "inimigo de Deus". Por sinal, segundo consta na biografia de Klossowski, o escritor, amigo de Gide e Bataille, fora "acometido por uma crise religiosa que o levou a abandonar a vida pública".
O que viria a ser "crise religiosa"?
Superada a crise, Klossowski virou noviço dominicano e estudou nas universidades católicas de Lyon e Paris. Depois largou o catolicismo de mão e regressou, então, à vida laica em 1945. Dois anos depois escreveu seu primeiro livro: Sade Meu Próximo. Como percebe-se, sua "reconversão" foi ultraradical.
A edição de A Vida de Nosso Senhor, que voltei a topar num empoeirado sebo de Brasília, traz uma seleção de gravuras (a imagem que ilustra o post é uma delas) do contemporâneo de Dickens, um tal Julius Schnorr von Carolsfeld.
As gravuras de Julius têm o estilo de ilustração que os filhos de Dickens gostavam e conheciam por causa das bíblias domésticas da era vitoriana. Ao dedicar a obra aos filhos, Dickens pensou até mesmo nas ilustrações.
Isso que é pai!
LENDAS DO SUL - O catolicismo também batizou a literatura gauchesca com bastante água benta, diga-se de passagem, mas produziu passagens tão belas quanto as planices pampeanas.
O escritor pelotense João Simões Lopes Neto (1865-1916) fez de "O Negrinho do Pastoreio" o definitivo conto dessa antiga e sincrética lenda. Foi publicado originalmente no volume Contos Gauchescos & Lendas do Sul, de 1912.
É dessas leituras na qual as lágrimas, por vezes impossível de detê-las, rolam salgadas pelas maçãs do rosto. Se você estiver num dia meio "sensível" - um dia "emo" - deixa para ler depois.
Mais bonito, contudo, é o jeito como Neto junta literatura rio-grandense valendo-se da paisagem típica do Sul e do pitoresco linguajar para tecer seu regionalismo. Perfeito para se ler em voz alta na volta da fogueira, tomando chimarrão amargo e carneando uma costela gorda.
O livro é dividido em duas partes: Contos Gauchescos ("O Negro Bonifácio", "O Boi Velho", "Jogo do Osso") e Lendas do Sul ("Amboitatá", "A Salamanca do Jarau")".
A biografia de Simões de Lopes Neto é curiosa: nascido em Pelotas, para ganhar a vida envolveu-se numa série de negócios: de uma fábrica de vidros à uma destilaria. Os negócios, porém, fracassaram.
Vitimada pela guerra civil no Rio Grande do Sul, a Revolução Federalista, a economia do Estado fora duramente abalada. Cessada a beligerância, Lopes Neto ergueu uma fábrica de cigarros. Os cigarros ganharam o nome de "Diabo", ou melhor, "Marca Diabo", o que gerou protestos religiosos e a expressão que - até hoje - designa "produto de qualidade duvidosa".
A audácia empresarial de Lopes o levou a montar uma firma de torrar e moer café. Ele também desenvolveu uma fórmula, à base de tabaco, para combater sarna e carrapatos. Fundou, ainda, uma mineradora com a meta de explorar prata em Santa Catarina.
Empobrecido, em certa fase da vida sobreviveu como jornalista em Pelotas. Como escritor, Lopes Neto valorizou a história do gaúcho e suas tradições.
Todavia, o conto "A Lenda do Negrinho do Pastoreio" não se trata, exatamente, de "cultura gauchesca" (um código quase fechado para o resto dos brasileiros).
A lenda é meio africana/meio cristã, era contada no final do século retrasado pelos defensores do fim da escravidão, mui popular no Sul do Brasil, particularmente no Rio Grande do Sul.
João Simões Lopes Neto descreveu-a magistralmente: mais do que lenda, um libelo de fé redentora, a fé que salva. Foi escrito para os que nada possuem, senão a fé.
Pode chorar à vontade.

o nEGRINHO dO pASTOREIO


JOÃO SIMÕES LOPES NETO
Naquele tempo os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos...
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.
Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando...
Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o — Negrinho.
A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem. Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o iudiava e se ria.
* * *Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande. Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais.
Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta...
As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.
—Pelo baio! Luz e doble!…
—Pelo mouro! Doble e luz!...
Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta...
Empate! Empate! — gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa colhera. — Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! — gemia o Negrinho. — Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip! hip! hip!...
E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.
— Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava o outro corredor. Hip! hip!
E cerrava as esporas no mouro.
Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera. Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados.
E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço.
— Foi mau jogo! — gritava o estancieiro.
— Mau jogo! — secundavam os outros da sua parceria.
A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo.
Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
— Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.
E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e haguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia.
* * *O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.
E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:
— Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando. Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim.
Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.
O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: a estrela-d’alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio, os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo.
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.
* * *O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo.
Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo.
O gado ficou deitado, os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam... Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara.
E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu...
Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá...
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou...
* * *O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu...
E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.
Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...
Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas. Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
* * *A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nem rastro. Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.
Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!...
O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não. chorou, e nem se riu.
* * *Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro. Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...
E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…
Então, muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.
* * *Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias.
Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e n&o vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.
* * *Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.
O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.
Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo —Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!...
Se ele não achar… ninguém mais.

sexta-feira, 26 de março de 2010

pORTO aLEGRE: o tEMPO vOA cOMO uM bONDE

Feliz aniversário Porto Alegre!
238 anos de existência dessa cidade cheia de coisas legais (belas prendas, churrasco de primeira, Mário Quintana, amigos eternos, rock'n'roll, roupas de inverno, Parque da Redenção, bergamotas, aqueles dias de frio ensolarados...) e, também, com seus inúmeros defeitos e mesquinharias - como em todos os lugares do mundo, praticamente. Minha singela homenagem à cidade na qual me criei e ainda amo muito, apesar do afastamento, é essa clássica série de fotos que remontam, através das décadas, a história dos bondes (!) na capital gaúcha.
Boa viagem.

terça-feira, 23 de março de 2010

sAMBOLERO*

Mais um capítulo da eterna reinvenção sonora de um estilista cuja obra desafia categorizações
POR CRISTIANO BASTOS
Em 1956, Donato e seu regional entraram em estúdio para o registro de Chá Dançante, o acetato de 12 polegadas no qual Tom Jobim empresta sua sotisficação ao piano em quase todas as faixas, embora o importante dado tenha sido omitido na época. Mas o disco noticiava na contracapa: "O mestre do acordeon João Donato num repertório de primeira".
Dois anos depois, quando o LP suplantou o formato anterior de 78 rotações, o acriano adotou, definitivamente, a execelência do piano como instrumento. Só em 1962, porém, ano de grandes álbuns de jazz, como Tamba Trio, Go, de Dexter Gordon e Samba Jazz, de Stan Getz & Charlie Bird, Donato lançou com o trio formado por Tião Neto, Milton Banana e Amauri Tristão seu primeiro disco autoral, Muito à Vontade.
Gravado na norte-americana Pacific Jazz, lar de Chet Baker, Bud Shank e Gerry Mulligan, a produção ganhou nos states o jingado nome de Sambou, Sambou. Foi a bolacha que flechou o coração dos grandes jazzistas para a bossa nova e projetou Donato para o mundo.
Sambolero, o novo de João Donato, persegue a mesma doutrina instrumental de Sambou, Sambou, mas não é tão somente um simulacro da "álgebra" que lhe consagrou planetariamente. O disco excursiona por uma fração de sua obra selecionada, literalmente, a dedo pelo pianista: entre outros gêneros, navega do samba ao bolero e aporta na velha bossa-nova e na eternidade do jazz. O resultado apruma-se entre o fino e popular.
Galvanicamente unidos estão o compositor, o pianista e o arranjador – indissolúvel trindade. À menor frase sacada de seu piano lustrado em Debussy, o senso rítimico prodigioso de Donato põe o ouvinte para "balançar" em Sambolero.
"Amazonas" abre o disco com sua melodia nascida de um sonho que João teve na temporada que passou nos EUA. Posteriormente letrada (duplamente) por Lysias Ênio e Arnaldo Antunes, em no disco a música foi vestida instrumentalmente apenas. "Lugar comum", também batizada de "Índio Perdido", é a primeira menção que Donato fez, nos anos 40, à terra natal, o Acre.
O próprio tema que dá nome ao álbum, "Sambolero", conta uma história: remete à curiosa "Chombo Lero", originalmente uma homenagem ao sax tenor cubano José "Chombo" Silva. O piano de Donato também flana cristalino por standarts de seu repertório, como "Bananeira", "Brisa do mar", "Jodel", "A rã" e a bossa com jazz afro-cubano de "Nasci para bailar".
"Sambou, Sambou" (a única que apresenta letra), malemolente dueto com Zeca Pagodinho, cuja gravação havia sido registrada em Prova de Amor, último álbum do pagodeiro. É séria candidata à hit do disco. Para tocar no álbum, João escalou a dupla de ouro Robertinho Silva, na bateria e Luiz Alves, no baixo acústico, dois dos mais hábeis ritmistas com militância no círculo das boates cariocas. O trio toca há 30 anos e, juntos, rodaram o globo terrestre.
Às vésperas de gravar Sambolero, João Donato andava de um lado para o outro, sem ter bem certo o repertório e o conceito do álbum. O produtor João Samuel queria cancioneiro novo combinado ao antigo. Era madrugada e a esposa e empresária de Donato, Ivone Belém, receitou: "O disco que te mostrou ao mundo e tem o genuíno toque donatiano é Muito à Vontade. Vai beber nessa fonte!". Assim ele fez.
Aliás, "muito à vontade", na gíria da época significava que o cara tinha fumado um "cigarrinho do diabo" e ficado muito descontraído. Não se sabe se foi o que aconteceu em Sambolero, mas que dá vontade de relaxar ouvindo, isso dá.
*Rolling Stone. Na foto, João Donato e João Gilberto flanam muito à vontade pelas ruas de New York City, 1957.

segunda-feira, 22 de março de 2010

yES, mULHERES








*Filho do poeta Vinicius de Moraes (1913-1980), o fotógrafo autodidata Pedro de Moraes iniciou-se na finada revista Manchete. Sua missão, flagrar os ambientes artístico-popularescos do Rio de Janeiro.

Durante a ditadura, Pedro alistou-se nas fileiras do Cinema Novo: foi diretor de fotografia de grandes cineastas, como Joaquim de Andrade (Guerra Conjugal, 1975), Glauber Rocha (Idade da Terra, 1979) e Gustavo Dahl (Em Busca do Ouro, 1965).
Em 1967 e 1968, suas câmeras Laica/Rolleyflex serviram aos levantes da esquerda. O fotógrafo se diz confesso admirador do lendário correspondente de guerra, o húngaro Robert Capa, que postulava: "Se as fotografias não são suficientemente boas, é porque não se está suficientemente perto".
Mas a arte de Moraes não estacionou no "engajamento". Nesta série, "Mulheres", sua lente desvela o universo feminino brasileiro dos anos 60, tão denso (e, como se vê, sem muita "repressão" por parte delas) quanto a política daqueles tempos.
"É mal de família, está no DNA", brinca Pedro de Moraes, aludindo ao pai - mestre no assunto. Bom filho, ele se dobra ao gênero: "Elas me ensinaram 80% de tudo o que eu sei".
Dê uma chegadinha no site dele, e veja quantos retratos de dar água na boca.

quarta-feira, 17 de março de 2010

nÃO qUERO sER gRANDE*

"Sentimos que é o grande momento de nossa carreira", aposta o vocalista do Superguidis, Andrio Maquenzi, sobre o terceiro disco da banda gaúcha. Gravado no Estúdio Daybreak, em Brasília, com produção de Philippe Seabra (Plebe Rude), mixagem do norte-americano Kyle Kelso e masterização de Gustavo Dreher, o álbum será editado em versão dupla no Brasil em uma parceria entre os selos Monstro Discos e Senhor F.

Como bônus, terá o áudio do DVD Unplugged, gravado em um inferninho porto-alegrense (a versão em vídeo tem lançamento previsto para maio. São 21 faixas com temas dos três discos e duas covers dos conterrâneos do Prozak). Na Argentina o novo trabalho sai em versão simples, via Scatter Records.

Meio-termo entre o lo-fi ensolarado do primeiro e a compressão noise do segundo, o novo álbum, define Andrio, é um conjunto de altos e baixos, dinâmico e diferente dos outros mais lineares.

"Tem sons limpos e cristalinos seguidos de uma podreira nunca antes executada por nós nos outros discos." Batizado de Superguidis, a banda quer que o álbum seja conhecido pela capa, "como o do cachorro de três patas do Alice in Chains", compara Maquenzi.

Eles juram nunca terem se deslumbrado com o afã de tornar-se "banda grande". "O foco sempre foi a música e o reconhecimento como consequência. Sem contar que fazer música vai ficando cada vez mais divertido à medida que a gente vai aprendendo e se permite experimentar", pontua o guitarrista Lucas Pocamacha.

Longe de serem "indies mimados de apartamento", os integrantes do Superguidis têm a cara da "juventude suburbana emergente". Em uma crítica à pasmaceira do rock de Porto Alegre Wander Wildner chegou a comentar que a parte guaibense da banda é o que a salva. "Ele se referia justamente a essas 'marrentices' da capital, tão careta e conservadora".

De fato, a banda tem cultivado rara coerência como operários na construção do novo mercado de música independente. Nas palavras de Andrio, o Guidis "não foi mordido pela mosquinha azul do mainstream".

"Estamos trilhando um caminho. Para nós, é muito mais coerente do que esses pulos no abismo que muita galera dá. O problema é a afobação e a busca pelo sucesso, nem que isso custe a integridade artística. Especialmente falando-se de um mainstream tão imbecil quanto o nosso."

No segundo álbum, A Amarga Sinfonia do Superstar, parte da crítica avaliou que os Superguidis "cresceram rápido demais". Mas, e no terceiro, quão amadureceram? Andrio vê o novo disco soando pleno de juvenilidade. "As guitarras estão college rock noventão, em contraste com as letras, ainda existenciais, mas não bobas."

O que anda faltando no rock nacional, para ele, são guitarras sujas: "Só ouço guitarras com synth e sopros e sofisticaçõezinhas para encher linguiça", alfi neta. Muitas promissoras bandas do cenário independente acabaram perdendo o bonde por falta de discos e hits e ficarem só no esquemão dos shows. O Superguidis consegue fazer essa dosagem com maestria.

"Não temos uma fórmula e, se tivéssemos, não entregaríamos o ouro. Eu sou o cara que toca como se fosse o último show. É o momento do exorcismo. É aí que a gente ganha a torcida: sendo sinceros." Lucas discorda: "Eu acho que a gente tem uma fórmula, sim! Ela consiste em não se preocupar esperando a chegada do Papai Noel e tentar fazer a próxima música muito melhor que a anterior!"


*Rolling Stone 42. Leia a seguir entrevista com Andrio Maquenzi e Lucas Pocamacha, que responderam as mesmas perguntas (ou quase todas!).

Fã-Clube Adolescente

eNTREVISTA: sUPERGUIDIS


O trecho de qual canção definiria o momento dos Superguidis no terceiro disco?

Andrio: Talvez "I'm still living the dream we had, for me it's not over" (eu ainda estou vivendo o sonho que tivemos, para mim não acabou), refrão de Big Time, do álbum Broken Arrow, Neil Young. Tá, vai a música toda! Sentimos que é o grande momento na carreira da banda.

Lucas: Pô, eu não conseguiria achar uma frase melhor...

A banda mantém rara coerência como "operários" na construção do novo mercado da música independente. Qual segredo?

Andrio: Estamos trilhando um caminho, é verdade. Para nós, muito mais coerente do que esses pulos no abismo que muita galera dá. O problema todo é a afobação e a busca pelo "sucesso", nem que isso custe a integridade artística. Sobretudo falando de um "mainstream" tão imbecil quanto este nosso. Queremos o reconhecimento, sem dúvida, mas que ele venha com a consolidação de um trabalho autoral e de conteúdo.

Lucas: Nunca fomos deslumbrados com essa história de "ser banda grande". O foco sempre foi a música e o reconhecimento como consequência. Eu tô muito feliz com a situação que a nossa banda vive hoje, quer dizer, a gente andou boa parte do Brasil tocando e temos um puta reconhecimento pelo que fazemos. Sem contar o fato que fazer música vai ficando cada mais divertido à medida que a gente vai aprendendo umas coisas e se permite experimentar.

O Lucas disse que "fazemos música para quem quer nos ouvir". Lógica inversa, pois a maioria compõe para os outros ouvirem.

Lucas: O lance é que a música tem que vir em primeiro lugar sempre! É para isso que se deve ter uma banda, ao menos para mim. O que eu quis dizer foi que eu não vou tentar "adivinhar" o que as pessoas querem ouvir ou tentar me "adaptar" a um certo público.. Nos interessa muito mais cativar quem quer nos entender do que tentar convencer as pessoas a nos aceitarem. Pode soar meio prepotente mas, na verdade, é o contrário. Eu tenho uma puta bronca com essa grande indústria fonográfica que fabrica ídolos e os empurra goela abaixo de um público tratado como idiota, incapaz de ter opinião própria. Dou um baita valor aos caras que vão atrás dos nossos discos no soulseek ou em qualquer lugar da internet.

Sobre o que fala, exatamente, a canção "As camisetas"?

Lucas: "As camisetas" é sobre um pé na bunda que aconteceu na época em que a gente estava compondo o disco! Boa parte das minhas músicas no disco são sobre esse assunto. Também fiz músicas para o meu avô, como "O véio máximo" do primeiro disco e "Nova_completa" do terceiro. Ele morreu meio que nos meus braços e, incrivelmente, começou a chover bem na hora. Por isso que a musica tem aquele refrão "quase" meloso (risos).

Que nuances há entre o álbum novo e os anteriores?

Andrio: Eu vejo este como um conjunto de altos e baixos, dinâmico, diferente dos outros mais lineares. Tem coisa limpa e cristalina, seguida de uma podreira nunca antes executada por nós nos outros discos. Para mim é a principal diferença.

Lucas: Concordo. Esse disco foi feito pensando em ser um disco, saca? Os outros dois foram a união das músicas que a gente tinha feito até o dia de começar a gravar. Nesse, nós nos permitimos brincar de Pink Floyd e tentar moldar as músicas de acordo com a cara que queríamos dar ao disco. Para isso, foi essencial a pré-produção que fizemos em casa. Acho que nunca mais vamos gravar um disco sem fazer isso antes.

Longe de serem "indies mimados de apartamento", os Guidis têm a cara da "juventude suburbana emergente". É mais legal que ser "cosmopolitano"?

Andrio: Wander Wildner disse, certo dia, que a parte guaibense da banda é o que a salva (risos). Ele se referia justamente a essas marrentices da capital, sobretudo Porto Alegre, tão careta e conservadora.

Lucas: Bom, eu não posso falar nada... Fui criado em Porto Alegre desde guri! (risos). Mas em minha defesa tive uma criação old school com patinete, carrinho de lomba e futebol no meio da rua. O andrio que é o cara do video-game e da bicicleta 18 marchas! (risos).

Músicas como "Mais um dia de cão", "Espiral arco-íris", "Quando se é vidraça" e "Não fosse o bom humor" descrevem o cotidiano de vocês, mas também dizem sobre "condição social" e de como vêem o mundo: uma juventude pragmática e desideologizada...

Andrio: Talvez "Mais um dia de cão" seja a nossa canção mais política, mas não no sentido panfletário. Isso, sim, é uma merda. Já tive banda assim, de botar o dedo na cara e fazer discurso, mas quando tinha 18 anos. A gente sempre procura ser o menos óbvio possível, porém, falando de coisas óbvias, que nos aproximam de quem nos ouve. Desafio hein... Até agora deu certo.

Lucas: Eu só sei fazer música olhando para dentro e não para fora. Juro que já tentei...


Parte da crítica availou que, no segundo álbum, a banda cresceu rápido demais. E no terceiro, quão amadureceram?

Andrio: Eu vejo esse disco soando muito juvenil. Porra, as guitarras tão college rock noventão, em contraste com as letras, ainda existenciais, mas não bobas. Todo mundo faz aniversário e envelhece. E o que está faltando na música nacional são guitarras sujas. Só ouço galera com synth e sopros e sofisticaçõezinhas para encher linguiça.

Lucas: Eu vejo o terceiro meio assim também: tem bastante coisa sofisticada, mas nada metido à besta. A gente ainda é muito criança pra fazer disco "cabeção", contudo, não vamos fazer de novo o primeiro disco.

Muitas bandas independentes promissoras perderam o bonde por falta de discos e hits e ou por ficarem só no esquemão dos shows. Como vocês fazem essa dosagem?

Andrio: Não temos uma fórmula e, se tivéssemos, não entregaríamos esse ouro (risos) .Eu sou o cara que toca como se fosse o último show, é o momento do exorcismo. Música é isso, é descarrego. Nas letras também rola esse tipo de coisa. Vai ver é aí que a gente ganha a torcida: sendo sinceros.

Lucas: Eu acho que a gente tem uma fórmula sim! Ela consiste em não se preocupar esperando a chegada do Papai Noel e tentar fazer a próxima música muito melhor que anterior!

E a opção de permanecer em Porto Alegre?

Andrio: Eu tenho uma vida toda por aqui, casado e trampando numa produtora de jingles muito bacana. Se um dia quisesse me mudar, seria para Buenos Aires. Que cidade do caralho! Efervescência cultural. São Paulo até é legal, pois tem tanta gente que certamente terá um nicho para a tua música, mas sei lá... Ou você entra naquele esquema e dá um tiro no seu pé, ou fica onde está. Nós achamos que o fluxo deste cenário está tão descentralizado que não vemos necessidade de nos mudar, ao menos no momento.

Lucas: É... Eu tenho um assunto inacabado aqui chamado Engenharia Elétrica. Pelo jeito vai continuar inacabado por mais uns anos. E Porto Alegre não é tão longe.

O acústico que virá encartado com o disco saiá em DVD e CD?

Lucas: Sim! Ele entra no terceiro disco como um bônus para o pessoal que ficou esperando 2009 inteiro pra ouvir o disco! (risos) A idéia é lançar em DVD em maio, se tudo correr como planejado.

E a relação "platina" da banda?

Andrio: É uma parceria muito frutifera entre os selos Senhor F e Scatter Records. É uma honra para nós fazer parte deste circuito, que está se expandindo por toda a América Latina. O Festival El Mapa de Todos, realizado pelo Fernando Rosa, em Brasília, confirma isso.

Lucas: O nosso primeiro show em Buenos Aires foi um divisor de águas para mim. Nunca tínhamos tocado para uma platéia que nunca tinha nos ouvido e foi incrível a recepção. O pessoal realmente prestou atenção ao som e aplaudiu com sinceridade. Foi um dos nossos grandes momentos, na minha opinião.

Vocês também estão se aventurando como produtores, produzindo as bandas Prozak e Loomer. Falem sobre a experiência.

Andrio: O Lucas é quem faz as vezes de engenheiro de som: procura captar da melhor forma os instrumentos. Claro que ele também sugere algumas modificações quanto as estruturas das músicas. Mas isso, no caso da Prozak, acho que coube mais a mim, bem como ocupei-me em aprimorar a execução das canções deles. É sempre legal trabalhar com bandas amigas. Os momentos de folga com churrasco e cervejas são os mais recompensadores.

Lucas: Cada centavo que eu ganho hoje em dia é gasto com equipamento para gravação. Descobri que é extremamente divertido. Ô cachaça braba! (risos) Nessas férias eu e o Andrio gravamos a Prozak e eu gravei sozinho a Modernage, aqui de Porto Alegre.

Os Superguidis tocou em dois tributos: Guided By Voices e Mudhoney. Que tal homenagear os ídolos?

Andrio: Muito bacana e divertido. Vem aí também um tributo ao Plato Divorak, que vamos participar. Esse vai ser literalmente mais insano.

Brasília: segunda casa?

Andrio: Até não sei se já não foi promovida a primeira casa...

Lucas: Brasília é que nem a casa da vó!



Superguidis (2010)

1 Roger Waters (Lucas Pocamacha)
2 Não fosse o Bom humor (Andrio Maquenzi)
3 Visão Alem do alcance (Andrio Maquenzi)
4 As camisetas (Lucas Pocamacha)
5 Quando se é vidraça (Andrio Maquenzi)
6 Fã-clube adolescente (Andrio Maquenzi)
7 De mudança (Andrio Maquenzi)
8 Casablanca (Lucas Pocamacha)
9 O usual (Lucas Pocamacha)
10 Nova_completa (Lucas Pocamacha)
11 Aos meus amigos (Andrio Maquenzi)

terça-feira, 16 de março de 2010

lADO B dO rOCK*

Entrevista: Nelio Rodrigues
POR CRISTIANO BASTOS
Se, no século 21, roqueiro brasileiro tem "pinta de emo", nos remotos anos 60 e 70, de fato, demarcou a madrinha Rita Lee, a cara desse tipo underground era de "bandido". Tal marginalidade, porém, não restringia-se ao fenótipo: ditadura, toscos equipamentos, carência de público, mídia e indústria fonográfica sentenciaram as linhagens bárbaras do rock nacional ao segundo escalão.
O livro Histórias Perdidas do Rock Brasileiro Vol. I (Nitpress), do pesquisador Nélio Rodrigues, resuscita a mitologia de bandas como Os Selvagens, Analfabitles, Red Snakes, Sound Factory, Faia e Lodo. Originalmente, os textos compilados no volume foram publicados na revista eletrônica Senhor F.
Um dos gênios revividos é Jorge Amiden (Karma, O Terço), o "Syd Barret mineiro". Reza que Amiden foi o primeiro a empunhar uma guitarra de três braços (a tritarra) – antes de Jimmy Page –, no Festival Internacional da Canção de 1971. O Karma, a propósito, lançou somente um álbum de folk-rock-prog, o qual, desde 1972, hiberna criogenizado nos arquivos da gravadora RCA.

Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelas bandas brasileiras nos anos 60 e 70?
Antes, vale ressaltar o sucesso de uma linha do rock brasileiro, nos anos 60, que ficou conhecida como Jovem Guarda. De fato, um rock domesticado, calcado em baladas, muitas delas versões de canções italianas, cantado em português, com letras muitas vezes ao estilo das histórias em quadrinhos e feito por artistas cuja maioria não tinha pinta alguma de roqueiro.
Esse rock teve acesso às gravadoras, televisão, revistas, rádio e a imprensa de modo geral. Era inofensivo.

Já a outra linha, que corria em paralelo a Jovem Guarda, era formada por bandas que se serviam de temas dos grandes grupos ingleses e norte-americanos, cantados em inglês mesmo, e que copiavam a estética difundida a partir de Carnaby Street, um dos epicentros da "Swinging London". As roupas eram coloridas, os cabelos, grandes, e a atitude, pra lá de transgressora.
Essa turma, que tocava mais alto, que possuía instrumentos melhores, que se alinhava com os movimentos contraculturais e que fazia uso da maconha e do ácido lisérgico, ao contrário do pessoal da jovem guarda, sofreu com o desdém das gravadoras, teve muito pouco acesso aos jornais, revistas, rádio e televisão e ainda, em plena ditadura, era vista pela direita como subversiva e pela esquerda como produto de alienados a serviço da cultura imperialista.

Nessa linhagem, de menor visibilidade, podemos citar The Bubbles, Analfabitles, Som Beat, Red Snakes e The Outcasts, entre muitas outras atuantes nos anos 60, e A Bolha, Módulo 1000, Karma, Soma, Os Lobos, Liverpool, entre tantas outras que, nos anos 70, já haviam incorporado o português como idioma principal, servindo-se de um repertório próprio em detrimento dos covers em inglês. Sobre elas, carecem histórias e um justo e devido reconhecimento histórico.

Muitos discos, à época ignorados, lançados no período hoje são preciosidades para colecionadores do mundo todo. O que, na sua opinião, explica a anacronia?

De modo geral, o rock feito no Brasil, sobretudo nos anos 60, estava muito aquém do rock inglês e norte-americano. Já no período pós-tropicalista, quando os Mutantes e os Novos Baianos souberam mesclar o banquinho e o violão com o som eletrificado das guitarras, dando um sotaque tupiniquim ao rock brasileiro, todas as luzes apontaram o foco para essa duas bandas.
Além do mais, havia, sim, preconceito contra o rock feito no Brasil. Isso serve pra explicar o por que de discos antológicos como o dos Brazões, o dos Lobos e o do Karma não terem merecido a devida atenção.

Ao seu ver, qual grande mérito desses guerreiros pré-80's (década do "boom" do rock nacional)?

Guerreiros é a palavra mais adequada pra definir aqueles que tentaram sobreviver de rock no Brasil nos anos 60 e 70. Eles enfrentaram o desinteresse das gravadoras, da imprensa, das rádios; conviveram com as limitações impostas na aquisição de equipamento e instrumentos importados e, consequentemente, com a má qualidade do que era produzido no Brasil, na época; foram acusados de alienados pela esquerda e de subversivos pela direita; tiveram que romper preconceitos, conquistar espaços e formar público; contribuíram com o aprendizado de técnicos de som e com a melhora da qualidade do som nos shows e muito, muito mais.
Apesar de tudo, ainda deixaram como legado algumas obras importantes e algumas portas que os roqueiros dos anos 80 encontraram abertas. Se nem todo o rock produzido no Brasil nos anos 60 e 70 tinha ou tem qualidade, de uma coisa ele não pode ser acusado: a de não ter sido verdadeiro e de não ter sido feito com o coração.


Existe alguma explicação para que, hoje, o Rio de Janeiro não tenha a mesma efervescência rocker que florescia nos anos 60 e 70?

No Rio, o rock é apenas uma parte de um cenário onde floresceu (e ainda floresce!) o samba, o choro, a bossa nova e a MPB. Vale lembrar, contudo, que nas décadas de 1960 e 1970 o rock, no Rio, também teve que se contentar com os pequenos guetos que sobravam nos grandes espaços ocupados por Paulinho da Viola, Cartola, Jobim, Chico, Jorge Ben, Tim Maia, Edu Lobo, Elis Regina e por aí vai.
*Texto original da Rolling Stone 42.

segunda-feira, 15 de março de 2010

iNSTÂNTANEOS pERDIDOS dO rOCK bRASILEIRO*







*Registros diretamente uploadados do fantástico arquivo perdido (ou melhor, um achado!) do pesquisador Nelio Rodrigues, autor do esclarecedor Histórias Perdidas do Rock Brasileiro Volume 1 (Nitpress). Muito em breve, leia aqui entrevista (extended version) com o autor, o qual também está na Rolling Stone que está nas bancas.
Segundo Nelio, ainda restam muitas histórias perdidas por aí. Elas estarão em seu próximo livro: "No momento, ainda estou às voltas com um livro que trata de bandas como A Bolha, Soma, O Terço, Módulo 1000 e Equipe Mercado, entre outras", conta.
Legendas das fotos abaixo. Agora fique com alguns divertidos excertos de Histórias Perdidas:

"Em Copacabana, os Selvagens se apresentaram num amplo terraço que se estendia como uma marquise sobre o andar térreo. Uma multidão se aglomerou diante da loja, bloqueando inteiramente a calçada e parte da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Deu-se um nó no trânsito. Buzinas, gritos, aplausos e o som alto dos amplificadores reverberavam como uma massa sonora indistinta entre os muros de prédios da importante artéria do bairro. Caos total."

"...cada grupo levou o seu equipamento, transformando o palco num verdadeiro labirinto de amplificadores, caixas, guitarras etc. Além do mais, todos os amplificadores foram ligados em série. A coisa toda impressionava, em especial as duas enormes paredes de caixas de som, uma em cada lado do palco."

"Era verão, noite estrelada, muita bebida, um pouco de drogas. Mendes se encanta com a multidão e com o visual que tem do clube, localizado na beira da praia. Amiden se encanta com tudo e toma um ácido. A banda sobe ao palco, o público aplaude. A banda parece perfeita, show lindo, vibrante.
De repente, os solos de guitarra se tornam intermináveis. Amiden já não tem mais o controle do próprio cérebro. Quando o último acorde soa, Amiden desce do palco assustado. Quer ir embora, sumir dali, mas é levado pelo irmão Mário para a beira da praia. Os dois sentam na areia. Mário tenta acalmá-lo, enquanto Amiden se perde em plano existencial paralelo, numa viagem sem bilhete de volta."
Nas Fotos:
1 - Soundfactory
2 - Red Snakes
3 - Módulo 1000
4 - Lodo
5 - Karma (Jorge Amiden à esquerda)
6 - Faia
7 - The Bubbles
8 - Analfabitles
9 - LP Analfabitles
10 - LP Karma
11 - LP Os Selvagens
12 - LP Red Snakes

Who's Next?