sábado, 16 de maio de 2009

cAETANO tEM rAZÃO?


POR CRISTIANO BASTOS

Cantor e compositor inicia em Brasília sua nova turnê, Obra em Progresso, com disposição para questionar os velhos cânones da música popular brasileira

Caetano Veloso é um apaixonado pela capital do Brasil. Para o baiano, que escolheu a cidade para estrear a temporada nacional de shows do álbum Zii e Zie, Brasília é "a imagem por trás da emblemática "Tropicália" – "Eu inauguro o monumento no planalto central do País", como diz a canção.

"Sou apaixonado pela força de sonho que há aí", confessa o baiano, em entrevista ao Jornal de Brasília.

Em outra canção, "Flor do Cerrado" – essa explicitamente sobre Brasília –, ele canta: "Mas da próxima vez que eu for a Brasília/Eu trago uma flor do cerrado pra você". "Adoraria entrar mais fundo na sensibilidade candanga", filosofa.

A formação que toca hoje à noite é a mesma do disco Cê: Pedro Sá nas guitarras, Ricardo Dias Gomes nos teclados e contrabaixo, Marcello Callado na bateria. À frente desse grupo jovem e explosivo, paira o próprio Caetano – em voz e violão.

O crossover "samba'n'roll" soa bem nos dois últimos álbuns. Em certas canções, dá até para fazer um air guitar...Gesto revelador da aderência da música. E, por ser aderente, pop. Você concorda com isso: houve também a busca pelo "pop adesivo" em Zii e Zie?

Sou pop. Mas nunca esperaria que Zii e Zie fosse aderente. Até o David Byrne me disse ter tido dificuldades de atravessar a primeira faixa.O(diretor) Estevão Chiavatta, ao ouvir o disco, me disse: "É muito bom, mas por que você não volta a ser doce?".

Qual a sua canção predileta desse disco?

"Lapa". Gosto muito também de "Tarado Ni Você". Mas estou perto demais para não gostar de todas. Por quem é uma linda canção. E muito original.

O que você estava ouvindo enquanto o álbum era produzido?

Ouvi Animal Collective, Mariana Aydar, Rodrigo de Campos e Moreno – cantando How deep is the ocean (Irving Berlin) em versão brasileira de Carlos Rennó. Ouvi também coisas antigas de que gosto: João Gilberto, Francisco Alves, Mário Reis. Ouvi algumas vezes a ópera Moses and Aron, de Schoenberg, autor que acho genial. É uma peça muito forte.

Acha que, volta e meia, a MPB carece de boas camadas de guitarras para chacoalhá-la da pasmaceira que a acomete?

Nunca pensei nesses termos. Na explosão do tropicalismo, notamos que guitarras – entre outras coisas – podiam servir para quebrar a pasmaceira crítica e criativa que nos ameaçava. Mas essa pasmaceira nunca foi maior do que a vitalidade natural da música brasileira. Adoro nossas guitarradas da banda Cê. Mas detesto a reação costumeira contra tudo o que o Brasil consegue encorpar. Décio Pignatari diz que não fala brasileirês. Eu acho justamente que o brasileirês é essencial.

Você disse que São Paulo não saía da sua cabeça durante a concepção de Zii e Zie, embora a gravação tenha sido no Rio. E compor pensando em Brasília, é uma possibilidade?

Adoraria entrar mais fundo na sensibilidade candanga. Só fiz, que eu lembre, uma música explicitamente sobre Brasília: "Flor do Cerrado". Mas Brasília é a imagem por trás de "Tropicália" ("eu inauguro o monumento no planalto central do País"). Sou apaixonado pela força de sonho que há aí. Odeio "mordomias" e vida chapa-branca. Mas adoro o sonho de futuro, a elegância das linhas e a enormidade do céu. Gostaria de dedicar mais tempo a decifrar Brasília.

O que Brasília tem de legal?

Posso acrescentar que adoro a intimidade de grupos de jovens (não de gangues) nas superquadras. Adolescentes e crianças amam Brasília. Não gosto do aspecto Los Angeles: a impressão de que se tem de andar sempre de carro, a sensação de estar na estrada e não dentro de uma cidade. Mas adoro as conversas, o lago à tarde, as bandas que surgiram aí nos anos 80, o rap zangado das cidades-satélites.

E qual sonoridade teria um disco seu gravado na cidade?

Acho que teria som de guitarra. Mas se eu fosse passar um tempo em Brasília, creio que faria um disco eletrônico. Com sons de guitarra sampleados. Seria um disco mais espacial do que temporal.

Seu gosto pela crítica escrita é bem conhecido. Você até mesmo redigiu o release de seu disco. Redigir é um prazer tão grande quanto escrever canções?

Escrevo meus próprios releases desde os anos 70. Não todos, mas a maioria. Gosto de redigir. Gosto mais de ler do que de ouvir música. O livro Verdade Tropical é longo por causa do meu prazer de escrever. No blog tive uma oportunidade especial de escrever com frequência. Mas não preciso rebater críticas. Gosto disso também, mas não é uma necessidade. Antigamente, eu respondia do palco do show, de viva voz. Mas prefiro me comunicar por escrito. Responder a entrevistas por e-mail, por exemplo, é uma delícia.

Após o lançamento desse álbum "muito claro e denso, nascido num ano de chuvas no Rio, um ano de nuvens pesadas e escuras", pensa em lançar, agora, um disco "leve e solar"?

O show já é mais leve e solar do que o disco. Mas ainda não tenho ideia de que disco poderei fazer daqui a um ano.

O Lobão vive tocando na tecla da "monomania da bossa nova". Em dezembro, fez 10 anos da morte de Nelson Gonçalves e ninguém lembrou. A coisa que ele mais temia era morrer esquecido... A "monomania da bossa" causou um lapso na memória musical brasileira?

Nelson Gonçalves merece muito. Ele não será esquecido. Chico Alves não foi esquecido (aliás, ele é citado numa letra do Zii e Zie). A bossa nova deu mais força à tradição da música brasileira. João Gilberto não só diz que Orlando Silva é o maior cantor do mundo: ele nos pôs todos para ouvi-lo. Sem a bossa nova não teríamos o selo Revivendo. Sei por que a bossa nova teve papel de bússola: João Gilberto é um dos maiores artistas da canção em qualquer tempo e lugar e Tom Jobim é o maior compositor brasileiro e um dos grandes do mundo desde sempre. Mas tanto Nelson Cavaquinho quanto Mário Reis saíram ganhando com isso. Tanto Lupicínio quanto Ciro Monteiro. E mesmo Paulinho da Viola e toda revitalização do samba exclusivamente carioca se beneficiaram das conquistas da bossa. Não sei do que o Lobão se queixava. Talvez de falta de espaço para o rock? Bem, não há nada no mundo que mais se pareça com uma monomania crítica do que a aristocracia do rock'n'roll. Nada jamais vendeu tanto por tanto tempo quanto o rap. Mas o rock é mais nobre – e o rap é um dos seus derivativos.

Como flui a comunicação tocando com músicos tão jovens?

Minha comunicação musical com Pedro, Ricardo e Marcelo é a mais direta e rápida que já experimentei em toda a minha vida musical. Nada demora a ser entendido. E, uma vez entendido, nada tarda a ser realizado melhor do que a encomenda. Eles conhecem tudo a que me refiro – inclusive Nelson Gonçalves.

O que promete seu show em Brasília?

Clareza e inspiração. Nossas apresentações têm sido muito límpidas, calmas e profundas. Estamos muito orgulhosos do nosso trabalho. Mais ainda do que no Cê.

O que você tem a dizer sobre a farra das passagens aéreas?

Odeio a tradição das "mordomias". Tem a ver com o modo como Juscelino conduziu a mudança para Brasília e com a tradição grotesca dos privilégios presumidos que os brasileiros que escapam à miséria se arrogam. É uma desgraça. Não tanto o escândalo das passagens – que é sintoma da inadequação desses hábitos à vida política a que aspiramos – mas a tradição em si mesma. Precisamos mudar muito para chegar perto de ser o que verdadeiramente somos: um país grande, original, generoso, transformador do mundo.

Fora Lobão, quem mais nesse país também tem razão?

Lobão tem razão ao me dizer "chega de verdade". Ele também tem muita graça quando não tem razão – o que já justifica parte de suas falas. Ele tem também razão estética ao fazer certas escolhas. É um artista curioso com quem precisei ter um diálogo no nível da criação. Mas quem de fato tem razão no Brasil é Antonio Cicero (que citei extensamente em enrevista à revista Cult, que, uspiana que é, extirpou toda minha observação sobre a importância da razão dele)".

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