segunda-feira, 29 de setembro de 2008

o sÉCULO rEBELDE*

POR CRISTIANO BASTOS

Insurgências que abalaram códigos senis da arte no século 20 sobrevivem à brevidade do contemporâneo

Porventura coubesse comparação entre escrita musical e avanço da humanidade, em dois mil anos de história, daria para dizer: o mundo evoluiu em andamentos antogônicos.

Até o século 19, em compasso lento e desarmônico. Do século 20 adiante, numa vertiginosa cadência rítmica.

Nenhum paradigma (científico, tecnológico, econômico, político, humano ou social) resistiu ao efeito modernizador - e revolucionário - do século passado. Na arte não foi diferente.

Atônita, a Europa - capital da arte do mundo - assiste ao surgimento de insolentes grupos - e do obstinado propósito: a esconjuração da arte do passado. A iconoclastia do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo arremessou todos os cânones ao lixo, literalmente.

A arte do presente, para essas vanguardas rebeldes, passa a ser o imaginário do futuro. A linguagem racional e os significados – tão caros ao realismo – são sucedidos pela abstração. No lugar de todos os dogmas, a radicalidade da experimentação.

Na opinão do professor de história da arte contemporânea da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Jorge Lúcio Campos, as vanguardas artísticas ultrapassaram, na realidade, a própria arte. Depois de vários séculos docilizados pelo Estado, clero, nobreza, burguesia e mercado, enfim os artistas conseguiram expor suas próprias obras, utopias e intenções", advoga Jorge.

As insurreições contra a arte, todavia, não são bem fato exclusivo da "modernidade". As estruturas já eram sacudidas séculos antes, na verdade. É o que defende o editor da revista inglesa Smile, Stewart Home, no provocativo Assalto à Cultura – utopia, subversão e guerrilha na (anti) arte do século 20 (Conrad Livros).

Geneologicamente, Home faz interseções que conectam as vanguardas utópicas às "heresias medievais" – a chamada Tradição do Livre Espírito. Uma linhagem transgressora que, segundo Home, começa em Sade, Cope, Fourier, Lautremont e atravessa o século 20 por meio de vanguardas como futurismo e dadá.

O século 20, na abordagem do poeta paulista Décio Pignatari, foi o "século dos séculos". Na década de 50, ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Pignatari foi responsável pelo lançamento mundial da poesia concreta (vanguarda com bases no Brasil), que decretou a morte do verso como recurso poético.

Experimentação, termo-chave para entender a arte produzida nessa época, diz Pignatari, é conseqüência do principal fator operante naquele momento, a industrialização. Revolução que desencadeou todas as demais:

"Na arte, foi a era do experimento. Na imagem, a fotografia e o cinema; primeiro, em preto e branco, depois, em cores. Na música, a concreta, de ruídos, serial, dodecafonista. O cubismo, na pintura. Depois de Flaubert, na literatura, apenas novidades: de Joyce a Proust, a reforma no romance. Em poesia, então, nem se fale: Apollinaire, Pound, Eliot", pontua.

Em meio ao estrondoso alarido que foram as vanguardas históricas é improvável uma opinião unânime (favorável ou não) sobre o legado que deixaram. Herança que, negativa ou positiva, manifesta-se, incontestavelmente, nas inúmeras encarnações contemporâneas da arte.

Na opinião do poeta surrealista Claudio Willer, o "poder subversivo da imaginação" ensejado pelas vanguardas é uma postura que ainda está valendo. No caso do surrealismo, diz Willer, tem de ser pensado como um movimento de idéias, voltado à relação entre poesia e vida:

"Em meados do século 19, Baudelaire, na sua crítica ao realismo submisso ao mundo, já chamava a imaginação de A Rainha das Faculdades".

Para outro poeta de filiação concreta, Augusto de Campos, a contenda – se as vanguardas vingaram ou malograram no intento de rejuvenescer uma arte já senil e discursiva – está superada. Campos afirma que elas agiram positivamente e, mesmo que ao renegar o discurso, terminaram por ditar outros (como na miríade de manifestos escritos), ainda que libertários quando surgiram:

"A sublevação das primeiras vanguardas operou transformações fundantes na linguagem artística, colocando-a em sintonia com o seu tempo", coloca. O concretista ainda reforça: "É claro que elas deram certo, pois não há artista posterior significativo que não tenha sido tocado de algum modo pelas suas propostas. É uma evidência histórica que nem cabe mais discutir", diz Campos.

O que é indubitável para Campos, na avaliação do poeta, ensaísta e crítico de arte Ferreira Gullar (dissidente concretista que abandonou o grupo paulista para para ir formar a poesia-praxis, engajada e política), ainda é uma divergência. Por conta do feroz diagnóstico que tece sobre a arte moderna, Gullar é temido como um dos críticos mais abrasadores do país.

No seu último livro, Argumentação Contra a Morte da Arte, ele censura duramente as manifestações artísticas contemporâneas. Ao seu ver, "obstinadas pelas vanguardas". Gullar também condena a resignação da crítica frente ao novo como fundamento basilar da qualidade de uma obra.

O volume – o título justifica essa intenção – vocifera duramente contra o cacoete de anunciar o óbito das linguagens: da palavra, da poesia, da música etc. Gullar ataca os valores germinados a partir do "inconformismo renovador" das vanguardas. Para o poeta, experiências que não conduziram à arte, mas ao soterramento de outras formas de expressão.

Em especial, a pictórica: "Movimentos anteriores, cubismo e expressionismo, ao contrário do dadaísmo, foram, sim, importantes à renovação da arte. O cubismo, por exemplo, inverteu o processo artístico. Antes, o artista pintava a partir da natureza. Mesmo que não a copiasse, como Cézzanne, ele partia dela. Com o cubismo isso muda: o pintor parte da tela em branco. Inventa o que vai pintar. Esse processo, quando o dadaísmo faz a apologia da morte da arte, já está praticamente encerrado", analisa.

O que tinha de ser partido, na opinião do crítico, já estava em pedaços: "O daísmo já não tem mais o que fazer. Faz então a antiarte – que, no fundo, é um impasse. O dadá não ficou somente contra a arte do passado, ficou é contra tudo! E não propôs nenhuma invenção", critica.

Aquele que é considerado um dos principais paradigmas da arte moderna, o ready-made, uma autoria do dadaísta Marcel Duchamp, no conceito de Gullar, é eloqüente dessa "falácia": "Se pego uma roda de bicicleta e a ponho de cabeça para cima num tamborete e a faço girar, então isso é arte... Se assino R. Mutt num urinol, idem. É esse o impasse da arte de hoje", polemiza.

A controvérsia suscitada pela arte do finado século, absolutamente, tem um eixo de gravitação que varia muito em torno do modelo de ready-made. Grande parte do que foi realizado após o seu advento, indica vastíssima produção influenciada pelas suas técnicas. Procedimentos – é bom ressaltar – sobretudo calcados na apropriação de objetos pré-existentes, retirados do cotidiano, aos quais são dados a condição de "arte".

A respeito dessa conduta polêmica, a crítica de arte das revistas Opus (francesa) e Artefactum (Belga) e doutoranda em estética pela Universidade de Paris, Muriel Caron, diz que o ready-made foi responsável por levar a arte à uma verdadeira e duradoura subversão. Mudança, no seu juízo de historiadora, superlativa: "O advento do ready-made passou a significar que todo e qualquer objeto pode transmutar-se em arte".

Antes disso, observa, fez uma ligação de três pontas, onde o equilíbrio, como nunca antes na história das artes, é o espectador: "O ready-made é uma condição que depende do artista, que o escolhe, do público, que o observa, e da instituição, que o expõe. O pressuposto para que ele se legitime como arte, é que esses três estejam de acordo em assim reconhecê-lo", afirma Ana. Preceito revigorado na declaração do próprio Duchamp, um "antiartista" nas suas póprias palavras: "Aqueles que olham é que fazem os quadros", resumiu.

*Primeira parte de uma grande reportagem cujo objetivo, no alvorecer de 2001, seria investigar o legado das vanguardas artísticas do século 20, no Brasil e no mundo. Porém, em sete anos de gaveta (!), jamais viu a luz de publicação alguma. Originalmente, deveria ser capa da Aplauso, à época. Se a matéria perdeu "atualidade jornalística", por um lado, de outro, muitas dessas opiniões continuam valendo... Na próxima parte: modernismo, fluxus, mail art, nomes múltiplos, o underground da arte brasileira nos anos 70. E muito mais!

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