quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

i'M a dUDE!

Dois queridos álbuns da minha coleção de rock foram descaradamente roubados há alguns anos. Nunca mais os achei: seja fuçando nas lojas que não mais frequento (por causa dos preços de primeiro mundo) ou nos labirínticos Jardins dos Downloads.
Na maior cara de pau, me surrupiaram Another View (Verve, 1967-1969), do Velvet Underground. Na festa do meu aniversário... O ladrãozinho está numa das "grandes bandas" do rock brasileiro - é o que dizem por aí.
O malandro, inclusive, havia "roubado" as namoradas de uns conhecidos, em Porto Alegre. Os corações partidos rogaram-lhe tanta praga que a criatividade do grupo, de fato, é só ladeira abaixo.
Mais de uma vez o flagrei com o álbum na mão. Comentava com os outros capangas (que nunca tinham ouvido falar):

- Esse é o disco que falei pra vocês! É esse é o disco...
Esse nem para download achei mais. Toricamente, no dia do meu aniversário eu deveria estar ganhando alguma coisa; não perdendo. Mas, o que Another View tem de tão bom, afinal, a ponto de alguém querer roubá-lo?
Velvet Underground, ora. E quer mais?
Nesse álbum estão as melhores versões de "We're Gonna Have a Real Good Time Together", "Coney Island Steeplechase" e "Hey Mr. Rain". Músicas que dão vontade de comer, na maior larica. São "trufas de chocolate" assadas nos porões da Factory de Andy Warhol.
All The Young Dudes (1972), do Mott the Hoople, foi outro álbum que algum esperto gatuno "levantou" de minha discoteca. Nem desconfio quem tenha sido. Talvez esteja lendo esse texto agora. Se estiver, por favor: devolva-o.
O mais foda é que, nos idos de 1993, além da espera comprar álbuns importados era sacrifício econômico dos mais heróicos para qualquer jovem. Até para o com grana.
A situação daqueles miseráveis tempos era simples. Resumia-se entre "ou comer ou beber": com o capital de um disco saía-se para beber umas cervas (e tentava-se jantar uma fêmea) ou, então, comprava-o para ouvir em casa de cara - e, pior, solito.
Há uns 15 anos, quando o rock ainda não estava na moda (fora o grunge e o hard rock pouser), era mais fácil achar uma virgem do que conhecer uma companhia feminina para ouvir Mott The Hopple juntinho de você. Hoje dá.
Outra opção era curtir o novo som com os camaradas roqueiros: invariavelmente durangos, porém, sempre comparecedores com aquele "salvador da pátria". Essa sociedade eu mantinha com o legendário Willian Caveman, vulgo "Pancadão".
Jairo comercializava seus fanzines punk por R$ 1 para comprar ganja e ouvir rock. Saudoso amigo, Caveman morreu no ano retrasado.
A gente ouvia All The Young Dudes, que ele curtia pacas, sempre a tarde. Fumávamos inúmeros fanzines movidos pela combinação coff'and'cigarrets.
Pensando bem, esperar por um disco importado obrigava o fissurado roqueiro a investir sua grana num disco o qual - comprovadamente - deveria ser muito bom. Senão, a roubada poderia ser daquelas.
Esse, atualmente, é um dos pontos que, diante das facilidades para se conseguir música grátis, "velha ou nova" (anacronia que esvaziou seu sentido, hoje) chamam atenção.
No passado ou no presente, é tanta coisa disponível que nem tudo, nem mesmo menos da metade de um terço, pode ser ouvido de maneira acurada: impossível. Deve ser por causa disso que o ruim é superestimado e o bom substimado, muitas vezes.
Quase quatro décadas de paradigmas estético-tecnológicos sofridos pelo rock'n'roll, tem um predicado que, eternamente, abrilhantará All The Young Dudes: a produção de David Bowie.
A história é conhecida. No começo dos anos 1970, o Mott the Hopple (banda inglesa com antecedentes no r&b e no hard rock) estava na pior. Porém, pegaram carona na onda glitter e deram-se muito bem.
Fã do Mott, Bowie os resgatou do limbo com seu "toque de Midas". De presente, compôs o hit maior do Mott, "All the Young Dudes".
Se Bowie, hoje, não dita mais tendência cabe lembrar, no entanto, que, de Hunky Dory à Let's Dance, deu só ele. Uma supremacia pop que reinou sobre a face do planeta.
David Bowie não produzia seus artistas, e só; ele imprimia sua rubrica sofisticada às obras de outrens. The Idiot e Transformer, discos de Iggy Pop e Lou Reed, respectivamente, são quase impossíveis de serem concebidas como não sendo, também, um pouco de sua autoria.
Com o Mott não foi diferente. Bowie emprestou sua genialidade a All The Young Dudes sem, todavia, descacterizar o som alheio com a resplandescência de seu brilho pessoal.
Vamos concordar que seria mui fácil roubar a cena, caso Bowie assim desejasse. O iguana Iggy, cansado de suas intromissões, porém, colou um aviso na porta do estúdio de gravação: "Expressamente proibida a entrada de David Bowie!".
Reza a biografia do Mott que Bowie escreveu "Sufragett City" (petardo protopunk-feminista de Ziggy Stardust) para eles; só que teriam recusado a faixa. Também teriam refugado "Drive in Saturday", balada fifith-glam que Bowie viria registrar - soberbamente - em Aladin Sane (1973).
Laborioso/generoso, Bowie tirou da cartola o potencial hit e deu-o para o Mott: "All The Young Dudes" foi escrita no flat do vocalista Ian Hunter, em Londres, numa tarde. Na mosca: a canção galgou o Top of the Pops.
A letra cita Beatles, Stones e T-Rex, e pode ser definida como a "'All You Need Is Love' do glam rock":
"My brother's back at home with his Beatles and his Stones/We never got it off on that revolution stuff/ What a drag, too many snags".

Anos após o sumiço de All The Young Dudes, noite dessas eis que o desaparecido me ressurge numa versão expandida & remasterizada. Isto é, sumo e suprasumo. O suprasumo são os outakes de "Black Scorpio" e "Ride On The Sun", além das canções gravadas ao vivo.
O disco tem nove músicas. E mais, sinceramente, não precisa. All The Young Duds foi feito para se ouvir na ordem "conceitual" estabelecida (por Bowie?). Abre com a versão pop ultraclassuda de "Sweet Jane", do Velvet Underground, entoada em falsete "cool" por Ian Hunter.
Idéia de Bowie, claro, que, nos anos 70, andava a ressucitar os melhores mortos do período. O álbum atesta a alta envergadura técnica dos caras do Mott The Hoople. A começar por Mick Ralphs, cujas guitarras incendiárias sobressaem-se o disco inteiro.
Quando Ralphs desertou da banda, Ian Hunter teria oferecido mundos&fundos ao parceiro para que regressasse. Ralphs recusou, porém. As recusas são praxe no Mott... O espaço vago foi preenchido por Mick Ronson, outro guitarreiro do Olimpo dos Deuses.
Em sua visão de produção, Bowie uniu as três primeiras canções ("Sweet Jane", "Momma's Little Jewel" e "All The Young Dudes") numa célebre suíte. A música-título vem colada à "Momma's Little Jewel", que termina como se o LP estivesse arranhado. A travessura funcionou muito bem.
Além de bem gravado e bem tocado, todas as canções de All The Young Dudes são magníficas. Certa vez, Lou Reed comentou que adoraria muito que seus álbuns soassem como as gravações realizadas na Inglaterra.
No documentário Best Albuns (Transformer), Reed desconstrói "Satellit of Love" no estúdio e , em detalhes, explica como Bowie montou seus grandiloqüentes vocais na canção. Mais de 30 anos depois, o enrugado Reed só falta chorar de tão "emocionado" ao rememorar o resultado.
All The Young Dudes, ainda por cima, é pop. Quem disseminou que o glam rock é um subgênero está redondamente - para não dizer "quadradamente" - equivocado. Com certeza, é um dos filamentos mais divertidos na sexagenária árvore genealógica do rock.
Na grande carreira de Bowie, a produção de All the Young Dudes é algo a mais. Especialmente, por tratar-se da produção de uma banda que não era da vanguarda, o Mott the Hoople. Depois, porque é sua maior incursão ao hard rock.
"The Sucker": impossível não se envolver pelos movimentos da bateria de Dale 'Buffin' Griffin, que se alternam aos riffs da guitarra de Ralphs. Dale arranca passagens de arrepiar o couro nas viradas.
"Jerkin' Crocus", com seu balanço malvado a la "Get it On", do T-Rex, é como se os Rolling Stones ganhassem peso maior. "One of the Boys" é o ápice. Quem ouviu algum dia sabe do que eu estou falando. A "música do telefone".
O rockão parece que terminará num fade in... E ringe o telefone. É uma típica canção do Mott, forte como "Violence", do disco seguinte, Mott (1974), ou "All The Way fFom Memphis" e "Rock'n'Roll Queen". Substimei "Soft Ground" por muito tempo: achava-a "progressiva demais". Mas estava enganado.
"Ready For Love/After Lights", dueto vocal/guitarrístico entre Ian Hunter e Mick Ralphs, antecipa o som do Bad Company, grupo que Ralphs montou com Paul Rodgers, do Free, após ter deixado Hunter na mão.

Para fechar um grande álbum de glam rock, nada mais apropriado do que uma baladona. "Sea Diver" navega na melhor tradição (e pungência) de "Lady Stardust", "Life's a Gas" e "Rock'n'Roll Suicide".
No grande finale, o "Aranha de Marte" Mick Ronson teceu sutis arranjos de orquestra e piano. Do jeito que fez em "Walk on Wild Side", canção que, por milésimos, não fez Lou Reed lacrimejar.
Quase um milagre.

LINE UP
Verden Allen – orgão, backing vocals
David Bowie – saxofone
Dale 'Buffin' Griffin – bateria
Ian Hunter – guitarra, piano, teclado, vocal
Mick Ralphs – guitarra
Mick Ronson – cordas, arranjos
Pete "Overend" Watts – baixo

Who's Next?