sexta-feira, 27 de junho de 2008

fLYNG V:INNERSPACE

Drink, Fight and Fuck!"
G.G.Allin
...1980. Enoc, juvenil e pobretão guitarrista, some da face da terra. A história a seguir, são relatos deste jovem, vindos do além, e foram transmitidos por ele mesmo, oralmente, por meio do avançado sistema Spitz Uranium, um redutor sônico que converte freqüências anos-luz em mensagens taquigrafadas
À semelhança do pai, Enoc era alto, lacônico, invertebrado e quase anoréxico. A exemplo da mãe, um proscrito. A mais estimada companhia que arrumou em sua bólida passagem pela terra, foi um negro e reluzente topete, que lhe dava simetria à cabeça. Para compensar a falta de talento legada pela mãe, bêbada e azarada, uma pin-up que terminou a vida se virando na Venezuela, a sua madrasta, a natureza, lhe muniu de uma fabulosa capacidade de adaptação a estranhas e máximas realidades. O pai, errático ator de filmes pornôs sórdidos no auge da guerra fria, aficionado a personagens do Velho Testamento e a Deuses Astronautas, ejaculara Enoc acidentalmente, durante tomadas para uma produção cinematográfica de sexo gang-bang, rodadas em um estúdio portátil.
Em mil novecentos e oitenta os dias iam e vinham, insensatos, em ziguezague, boogie woogie. Certa feita, amanheceu. E espertamente veio a tarde, dando no pé com a rapidez de uma amante noturna que vai embora de manhãzinha e te surrupia todos os tostões. Quando chegou a noite, Enoc olhou-se no espelho, colocou a franja para esquerda e cerrou o pulso – sinal de que estava pronto para perambular nas entranhas do perímetro urbano. Antes de sair, esgueirou o olho esquerdo no retrato de Joan Jett dependurado na parede do muquifo em que habitava – seminua, sexy, fácil –, e amou-a. No caminho, entre casas de alvenaria inacabadas e latidos de cães, não soube explicar, objetos anexos no céu, as estrelas, lhe lembraram uma canção, que para ele era a mais emblemática dentre todas: "Baby I fell good, from the moment i rise! Fell Good from morning, till the end of the day!". Naquela noite o firmamento estava especialmente crepuscular, travestindo astros em notas musicais, suspensas em partituras de constelações. No quadrante esquerdo da Via Láctea, um agrupamento estelar formava uma progressão de acordes: dó, lá menor, fá e sol. "Fuckingreat!", maravilhou-se, "o universo é do-it-yourself!"
A cosmonáutica moderna e os propulsores a jato completaram a cena punk celeste. Um objeto voador, em forma de bastonete, semelhante ao bacilo de Kock, apareceu cumprindo uma trajetória espiral. Milionésimos depois estava flutuando há poucas polegadas do chão, silenciosamente. O ovni abriu então uma escotilha, e dela saíram feixes infravermelhos que acertaram Enoc em cheio, sugando sua esquálida estrutura para uma infalível e magnética sedução luzidia. Velozmente, todas as suas moléculas se desintegraram como ladrilhos despedaçando-se e, velozmente, a matéria estava sendo refeita novamente, pululando na atmosfera como elétrons de raios catódicos emitidos do tubo de um televisor. Em pleno trânsito molecular, Enoc ainda sentiu a felicidade de se despedir do gênero humano, que julgava imprestável e incompatível para ele. Enfim, algo sobrenatural acontecia, e ele sorriu ao espaço sideral pela primeira honraria que estava recebendo nos milhares de dias em que caminhava por este planeta calçando sapatos de terceiros.
Deslizando em círculos vertiginosamente através de vastas dimensões coloridas, Enoc foi levado a uma espécie de limbo neutro no espaço, onde permaneceu até que fluísse novamente para outro plano. Da fluorescência foi arremessado direto ao interior de uma ampla sala, onde tudo era branco, sintético, impecavelmente limpo e economicamente decorado. A propagação de um som, próximo ao displicente rock progressivo da década anterior (que ele detestava), para piorar híbrido de cold age e plastic soul, enchia o ambiente de climas com intenções sofisticadas. Mas ele, no entanto, nada tinha a fazer. Então ficou ali, aguardando, até o momento em que uma trombeta sintetizada, de péssimo timbre, soprou, anunciando a chegada de alguém, ou talvez máquinas inteligentes e malvadas querendo subjugá-lo. Jamais pôde esquecer o que viu, e que por momentos fez sua euforia parecer uma piada interplanetária. Um ser – mezzo alienígena, mezzo humano –, cabelos lambidos, exalando lavanda e vestido numa roupa de banho estampada com alegres ideogramas japoneses, materializa-se em frente a Enoc num teletransporte típico de Irvin Allen. O sujeito calçava chinelas e pitava cigarrilhas. Sem titubear, ele abriu a boca e disse:
Caro senhor Enoc, me chamo Telecaster, e como você já deve imaginar, algo que não é terrestre está lhe acontecendo. Você já deve ter ouvido falar de abdução, de pessoas que são submetidas a experiências com seres extraterrenos malévolos e sem escrúpulos, não é mesmo? - disse isso enquanto ajeitava sua cigarrilha.
- Ouvi falar... - balbuciou Enoc laconicamente, mais curioso, na verdade, em saber por que diabos, afinal, ele tinha nome de guitarras fabricadas na terra.
- Na verdade, não fazemos parte da desalmada facção de planetas que deseja tirar proveito dos humanos... - sibilou o ser, largando uma baforada de essências desconhecidas. Ao contrário, nosso objetivo é causar prazer à sua raça – não dor. Queremos é um tipo de amizade, uma amizade muito íntima, será que compreende?
- E todos aqueles casos descritos nas revistas Ellery Queen, de cilindros inseridos nos orifícios das pessoas e partes do corpo extirpadas como dentes cariados? - questionou o outsider.
- Ora - disse Telecaster, enquanto servia um drink de coloração violeta e oferecia a Enoc. - Isso faz parte de uma opção sexual particular. Nós, nômades, renegados das mais longínquas plêiades do universo, obtemos sensações pan-sexuais buscando espécimes diversas na fauna planetária. Você, meu amigo, é um sortudo, foi eleito pela minha companheira ¾ gesticulou com o ar blasé de quem aprecia "observar". - Garanto – melhor –, dou minha palavra, que terá a mais significativa experiência da sua vida. Eu, já não passo de um indivíduo sem forças, estou liquidado. Minha mulher, pelo contrário, está sempre querendo mais e mais e mais e mais... Mas ela tem um único problema, no entanto. Seu maior defeito é a predileção por rock barulhento. Minha esposa gosta das guitarras apitando o tempo, de sujeitos que quebram guitarras, de coisas desagradáveis como a versão de "Born to be Wild" do Slade naquele disco vermelho – saca? E eu, entretanto, sou apenas um pós-pós-moderninho, desses adeptos da new romantic e da eurobeat. Oh!, este paradoxo está arruinando nosso matrimônio - lamentou-se, choramingando à beira das lágrimas.
- Por favor! - pediu indiferente o terráqueo, experimentando uma embriaguez sobrenatural em apenas um gole. - Pode me servir mais dessa bebida azulada? - disse, enquanto via mini-estrelas supernovas fazerem divertidas picardias ao redor de seu topete, sem dar a mínima para a miséria de Telecaster.
- Com certeza, meu jovem. De agora em diante, este será um templo de luxurias cósmicas só para você. É só pedir, e terá. Mandarei vir minha esposa - e assim Telecaster retirou-se da mesma maneira como havia surgido.
Enoc, meditando, concluiu que aqueles seres eram uma espécie de milionários do espaço. Magnatas extravagantes que bebem champanhe no café da manhã. Uma sub-raça de alienígenas libertinos em busca de contatos imediatamente promíscuos. Estava aí a grande chance de sua vida. Tinha que dar o golpe. A especialidade dos pais corria nas suas veias, e não podia escapulir disso.
- Abdução. Este é o estilo de vida definitivo. Dessa vez, quem vai enfiar algo neles sou eu. Ser abduzido pode até ser legal, mas abduzir é melhor ainda! - maquinou.
Enquanto esperava a chegada da vassala sexual intergaláctica prometida por Telecaster, do vácuo um horripilante estrondo penetrou como uma agulha nos seus tímpanos. O corpo sonoro vibrou e reverberou muito alto. Em seguida, amplificou-se docemente na silhueta de uma entidade quase poética, vaporosa, envolta em sedas transparentes, remetendo Enoc à sensação de leveza e melancolia causada pelo outono nos dias refestelantes que antecedem o inverno. A moça tinha feições assustadoramente humanas, com a exceção dos peitos e do traseiro. Ao invés de seios, dois cones pontiagudos sustentavam-se horizontalmente na altura do tórax, dando a ela classe e um rígido designe extraterrestre. Nas parte superior das nádegas, alinhadamente robustas e carnudas, esculpia-se um pequeno e sensual rabo. Ela levava consigo uma guitarra modelo Flyng V, prateada – como Marc Bolan naquele Velho vídeo de "Children of the Revolution". Um misto de ereção e repulsa apoderaram-se do astronauta Enoc. A garota, finalmente refeita, apresentou-se, gracejando em boas-vindas:
- Sou Loraine. Quiche Loraine, e sou ligada em aventuras anos-luz e rock’n’roll. "Não me importa quanto combustível possa gastar para encontrar novos amantes, desde que os encontre" – este é o meu lema. Seu planeta, porém, ainda é muito mesquinho para o clamor e a plenitude do sexo - condenou. - Ainda assim, sinto-me atraída por alguns de vocês, especialmente pelas qualidades naturais que têm, como desempenho e exotismo. Ilustres terráqueos, até hoje julgados desaparecidos, na verdade vivem conosco, e se sentem mais felizes aqui. E-n-o-c... - pronunciou sensualmente -, justamente por isso você foi capturado. É um cara de sorte, pois não será apenas um títere ao meu governo. Estou à procura de amor, mas só o rock – o rock, captou? – é sobre amor. Faça parte da banda que estou montando, The Pretty Cosmic Things of Love. Um grupo para levar ao universo a catarse das guitarras com potência sônica jamais sonhada: Punch! Abduções da platéia! Riffs cáusticos! sodomia! Amor! ¾ exaltou-se, por pouco não desfalecendo num terno gozo.
Eis que nesse exato momento ressurge Telecaster. Num átimo imperceptível, sumariamente, Loraine empoe a Flyng V e a pluga em um robusto amplificador valvulado, ajustando-o na regulagem máxima. Em um ato de insânia e sanguinolência desmedida, a garota do espaço desfere uma implacável pancada com o instrumento na cabeça do pobre alienígena.
Telecaster, por tratar-se de um sujeito anódino ao rock e as atitudes dele depreendidas, terminou sacrificado em virtude dessa música violenta praticada com ardor pelos humanos. Da cabeça rachada do alienígena, estirado e sem vida, afloraram miolos verdes, semelhantes a fitoplânctons, que jorraram como lavas e quebraram a harmonia asséptica do ambiente. Da guitarra despedaçada zuniram ruídos viscerais e mortais, como petardos, ecoando muito alto e excruciando os ouvidos de Enoc. Ironicamente, Telecaster acabara morto e imolado por uma Flyng V.
- Pronto. Já podemos começar nosso ensaios - conclamou Loraine, com um meio sorriso de satisfação.
- Sim belezoca, mas quem cantaria na Pretty Cosmic? - quis saber Enoc.
- Elvis Presley, respondeu a algoz. - Elvis não morreu, foi abduzido.
- Sempre pensei que Elvis tinha morrido por causa de barbitúricos - disse confuso o terráqueo.

- O abduzimos antes de isso ocorrer - foi o que teve como resposta.
Subitamente, outro teletransporte começou a se incorporar na nave. Primeiro, micropontos de matéria começaram a fervilhar na atmosfera. Logo, veio uma cabeleira negra, seguida de um rosto escondido em óculos escuros com aros ao estilo de Buddy Holly. Um terno vermelho bem cortado e uma camisa tecida em fina malha, trouxeram juntos a metade superior de um corpo. As calças eram pretas, e de pregas. A seguir, sapatos bicolores, preto e branco – brancos em cima e pretos nos lados –, sapatos de rock’n’roll, completaram a configuração. O cara tinha elegância. Era ninguém menos do que o Elvis Presley. A abdução devia ter feito bem a ele, a julgar pela boa forma, como nos tempos de "Blue Sued Shoes" e "Hound Dog", quando ainda não estava metido com bolinhas. Elvis ficou ali, calado e cordial, querendo permanecer cool e guardar sua garganta para o momento exato.
- Quem vai tocar bateria? - foi a dúvida de Enoc.
- Já vai saber.
Nova materialização. Desta vez, um indivíduo de meia estatura e atarracado apareceu. Era menor, portanto sua materialização foi mais rápida. Quando viu de quem se tratava, Enoc foi às lágrimas. Mais um milagre se descortinava, e ele entendeu que milagres, no fim das contas, são apenas a interferência de mundos na realidade de outros mundos. Nesse caso, a abdução era o milagre. Enoc iria tocar com seu maior herói: Keith Moon. O baterista veio sorrindo, com as baquetas em punho, e logo perguntou:
- E aí, velhinho, como vai Pete, Ray, Ringo Starr e toda moçada?
- Infelizmente, estão todos demodés - sentenciou Enoc. A onda agora é tecnopop.

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