segunda-feira, 30 de junho de 2008

dIÁRIO dE pAÊBIRÚ

As filmagens inaugurais do documentário sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes & Zé Ramalho, na última sexta-feira, além de grandes imagens, promoveram um festivo encontro na residência do músico pernambucano Alceu Valença.
O casarão é dos pontos turísticos mais famosos da cidade. Do andar de cima dá pra ver o verdejante mar que rodeia o Brasil antigo.
Não é possível mirar o oceano sem, por instantes (ou a todos os instantes), pensar na história do país. Quando páro pra imaginar tudo o que de pior e de melhor, em 500 anos, entrou por essas divisas marítimas, fica difícil descrever a sensação.
Refregas, comércio de especiarias, tráfico de escravos - o traço holandês, cuja herança cultural se afeiçoa aos rostos, à arquitetura de prédios históricos (mal-preservados) e aos mínimos detalhes que compõem a colorida complexidade de Pernambuco.
Cabeludo, risonho e, de assalto, deliciosamente espalhafatoso ao contar suas histórias, Alceu Valença é um prosador nato. Da sacada do seu casarão, todos anos anima o carnaval da cidade histórica tocando frevos, toadas e contando animados causos de nordestinidade.
Alceu é o personagem de Olinda, do mesmo jeito que Côrtes é de Recife. Os dois não se encontravam pessoalmente há bom tempo, e aproveitaram pra soltar a lábia esperta. Tiraram sarro um do outro e rememoraram as participações vocais de Alceu nas gravações de Paêbirú (tocou pente envolto com papel crepom) na Casa de Beberibe, que foi o estúdio de gravações. Foi um bate-papo entre amigos, que foi das raízes musicais às vertentes sonoras formadoras da obra musical de ambos os artistas.
Numa das melhores partes da conversa, comentaram o disco Molhado de Suor (1974), de Alceu Valença, álbum no qual Côrtes pilota seu tricórdio psicodélico de efeitos elétrico-orientalísticos. A cada encontro desses, nova certeza cresce: o quanto ainda somos vergonhosamente ignorantes (jornalistas, imprensa em geral, formadores de opinião, público, crítica especializada) acerca do relicário musical do Brasil. Nem é bom penar sobre o "extemporâneo"...
Laudas & mais laudas se escreveu sobre a importância dos Os Mutantes. Todos estão pra lá de carecas de saber, por exemplo, que o modelo estético/psicodélico concebido pelos irmãos Baptista - a atropofagia tropicalista do rock estrangeiro -, inventou um gênero totalmente brasileiro. Mobral. E deixemos o cânon Beatles, por favor, dessa vez, fora da discussão.
Bem pouco, lamentavelmente, foi considerado a respeito de Molhado de Suor e de Paêbirú, nesse contexto histórico da arte brasileira. São discos que não estão inventariados como grandes discos da MPB.
Em Molhado de Suor, Lula Côrtes transforma o tricórdio no intrumento psicodélico brasileiro por excelência. Explica-se pelas navegações, onde o instrumento veio embarcado, do Oriente para Recife.
Psicodelismo pode ser intrepretado, na música, como o encontro entre o folk, o regional e as "experiências mentais suigeneres". Molhado de Suor vai além, ao revelar sua "exuberância tímbrica", como definiu Alceu Valença. Sem falar que foi gravado por boa parte da galera que tocou em Paêbirú, um anos antes.
Brincalhão e sagaz, Alceu Valença falou, negou e discutiu como o rock afeta sua música. O cara é simpático à beça: mudou o roteiro de compromissos pra receber a equipe da Flesh Nouveau! Filmes. Revelar as coisas mais bonitas que rolaram no encontro, seria entregar o ouro antes do tempo. Mas que elas rolaram, rolaram.
Atrás das câmeras, o músico comentou sua atual situação mercadológica. Alceu, que também é cineasta, pra quem não sabe, é dos primeiros artistas independentes do Brasil: "Não toco em rádio, não pago jabá e não estou em nenhuma grande gravadora. Com freqüência me perguntam: 'Por onde andavas que estavas desaparecido?!' Respondo assim: 'Tava dando show pra 150 mil pessoas em algum lugar por aí!', gargalha.
Após as filmagens "em casa de Alceu", rumamos pro Bar Pina de Copacabana, no Recife Antigo. Lá encontramos a gurizada da cena de rock pernambucana influenciada pela psicodelia nordestina e udigrudi.
As bandas Canivetes, Os Insites, Anjo Gabriel, O Gigantesco Narval Elétrico, Dunas do Barato e Malvados Azuis, entre outras, contaram como a geração 70 influenciou o rock atual feito em Recife; depois, claro, tiraram a maior sonzeira com Lula Côrtes. Canibal (Devotos), e Dirceu (Jorge Cabeleira), que conduziu o momento "mântrico" da noite, também foram ao set de gravação.
Lula Côrtes é o artista mais querido de Recife - sua popularidade escancara. Nos lugares onde entra e passa, o magnetismo de sua personalidade exerce incalculável (e mítico) poder sobre as pessoas - seja lá qual for sua classe social.
Artista como poucos no Brasil, a obra de Lula é vasta como o ocenao que se vê da sacada da casa de Alceu: na música, na pintura ou na literatura, na poesia, na prosa ou versos, ele é incomparável. E ainda é o frontman da banda que faz um baita rockão, a Má Companhia.
Dos artistas que tive a chance de perfilar em reportagens, não havia me deparado, até agora, com algo comparável à energia criativa deste homem.
PEDRA DO INGÁ - A expedição à Pedra do Ingá teve de ser adiada por uns dias. Razões logísticas. A programação vai incluir, entrte outras surpresas, uma big jam session no meio do sertão. Torcemos por uma noite estrelada e pela presença de Lampião & Maria Bonita, que naquelas terras marcaram suas pegadas.
Está confirmada a ida dos músicos Lailson (que tocou com Lula em Satwa), Zé da Flauta e Mãe da Lua - essa, inacreditável mulher que debulha instrumentos tão incríveis quanto ela mesma. Pra sentir o drama: Mãe da Lua toca desde violas nordestinas de dez e doze cordas, a la The Byrds, até flautas de encantar serpentes das 1001 Noites.
As filmagens na casa de Alceu Valença foram realizadas pela Cabra Quente Filmes, da profissionalíssima equipe comandada pelo Hamilton, com apoio da Arrecife Produções Cinematográficas, da cineasta Katia Mesel.
That's all folks!

Arquivo do blog

Who's Next?