terça-feira, 11 de março de 2008

aVÔ-hERÓI

Noite dessas encontrei meu querido avô, Carlos Felisberto de Borba. Desde 13 de junho (dia de Santo Antônio, meu aniversário) de 1999 não o via.
Ele morreu nessa data. Recentemente, o vi num sonho e senti o dever de escrever sobre ele. Desde então, não passa um dia em que dele não me lembre. Escrevo levado pelo embalo tranqüilo do legendário álbum Chrome Dreams, cortesia de 1977 do mestre Neil Young. Não sei porque, apenas fui induzido a botá-lo no player e deixar rolar.
Nunca fui bom para guardar sonhos. Os esqueço assim que boto os pés pra fora da cama. Mas dessa vez foi indelével. Ficou registrado na alma, como gado marcado com ferro em brasa. Foi assim: meu avô Carlos & eu estávamos na cidadela de Las Palmas de Gran Canaria, região litorânea da Espanha, de onde meus ancestrais despacharam as raízes dos Hernandes, a família do meu bisavô, por volta de 1917 - em nível Oscar, Las Palmas é a terra natal de Javier Barden, o premiado deste ano na categoria melhor ator coadjuvante.
Jesus Hernandes Martins, avô de meu pai, Jesus Hernandes Bastos, trazia da Espanha o curioso relato: nunca comera bananas que não fossem maduras. Os cachos aportavam em Las Palmas vindos dos recantos tropicais do planeta e amadureciam nos porões escuros das embarcações. No Brasil, deliciou-se comendo a primeira banana "ao ponto" de sua vida.
No início do século, meu bisavô espanhol estabeleceu-se em Caxias do Sul, na serra gaúcha, tornando-se o primeiro comerciante a produzir vasilhames de vidro, os garrafões, nos quais, ainda hoje, muitos produtores envasam as produções locais.
Antes de surgir a concorrência, as vinícolas envasavam vinho em barricas de madeira. Engarrafar o líquido em vidro era vanguarda comercial da época, ou seja, coisa com futuro bastante promissor numa região cujo comércio era sustentado pela uva.
O negócio seguia próspero para os lados da família até que a empresa Irmãos Hernandes viu-se lograda por sócios pilantras que terminaram mui ricos - e vô Jesus ficou na pior, mas sem perder a compostura.
Cheguei a curtir meu bisavô. Neném, coloquei-lhe o apelido que levou até o fim da vida e tal qual é chamado pelo familiares até hoje: "vô Xuxo". Não conseguia dizer "Jesus"... Saía apenas essa versão masculina de rainha dos baixinhos quinze anos antes. E assim ele era: brincava comigo, pegava no colo e fazia sombras na parede para me divertir e assombrar com as mãos mágicas.
Meu avô Carlos, pai da minha mãe, Beatriz, tinha descendência alemã. Portanto, nesse sonho, acompanhava-me apenas como amigo na visita àquele lugar - o qual, instintivamente sabia, me ligava às origens ibéricas. O sonho começa conosco em frente a modesta casinha, rodeada por esmerado jardim que contornava toda a construção.
Uma pequena escadaria levava à porta principal. Nem foi preciso bater. A porta abriu-se: estavam a nossa espera. Fomos recebidos por um senhor muito velho, mas lúcido e íntegro. O sorriso que iluminava seu rosto expressava imensa alegria por nos ter em sua casa.
Entramos e vimos que muitas pessoas nos aguardavam: algumas de pé, outras sentadas num sofá. Todas verdadeiramente contentes, parentes queridos que há muito me reencontravam, como se séculos terrestres nos separassem. Velhos e crianças estavam na sala, o que não fazia a menor diferença.
No sonho, a idade perdia completamente seu significado. Eram todos parentes e me conheciam há tempos. Senti-me completamente afagado e confortado pelo amor daquelas pessoas. Aquecido pelo transbordante carinho que me passavam com abraços, beijos e palavras gentis e amorosas. Era muito querido por todos e sentia a felicidade de ser amado por tanta gente.
Eles falavam em espanhol e eu em português, mas todos nos entendíamos barbaramente. Vô Carlos apenas estava ali, faceiro como sempre, sorridente (não usava mais dentadura) - era parte da família desde sempre. Guiava-me na visita. Estava muito feliz por mim. Acariciava minha cabeça e passava os dedos entre meus cabelos - que hoje, como em outros momentos, novamente são médios.
No sonho, meu avô tinha a imagem que até hoje preservo: era o eu de hoje. Ficamos ali haurindo o bem-querer que, só raramente, haurimos na terra com nossos semelhantes de carne e osso, impedidos de sermos felizes por conta do orgulho, desavenças e posturas mesquinhas, preferindo ignorar completamente a grandeza que é a vida. Acordei tomado pelo bem-estar de ter compartilhado aqueles momentos com meus "parentes do além".
Psicanálise & espiritismo - Para o espiritismo, o sonho é a lembrança do que o espírito viu durante o sono. É a liberdade do espírito e a emancipação da alma. Com meio século de antecedência em relação à psicanálise, a doutrina espírita trouxe a primeira teoria realmente científica sobre o sonho.
Segundo o Livro dos Espíritos, "o fato de ir ver, durante o sono, os amigos, os parentes, os conhecidos, as pessoas que vos podem ser úteis, é tão freqüente que o fazeis quase todas as noites".
Sigmund Freud chegou bem perto do conceito kardecista do sono, mas o enorme preconceito que ele e seus contemporâneos nutriam pelo "ocultismo" o impediu de ir além... Materialista, Freud foi capaz de iludir-se com as "virtudes" da cocaína, mas negou pontos essenciais da espiritualidade humana. Lacan, seu seguidor, levou a relação à sério.
Meu avô Carlos foi grande exemplo. Esmagador exemplo de caráter e postura ante a vida e as dificuldades que ela apresenta. O venero por ter formado o caráter irrepreensível de minha mãe, Beatriz, da qual não faço crítica alguma nesta vida: só elogios. A paixão pela música foi um de seus legados - a propósito, deixou um violão velho, de cordas de náilon, guardado atrás do guarda-roupa de terceira.
Vô Carlos conheceu minha avó, Joana Zuboski, em Santo Antônio da Patrulha, interior do Rio Grande do Sul. Ela, colona polonesa; ele, colono-violeiro. Casaram-se e foram morar com a família em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre. Ali, meu avô começou a trabalhar como operário numa fábrica de azulejos, enquanto nas horas vagas articulava planos de viver de música e fazer disso um negócio familiar.
Autodidata, manejava com destreza todos os instrumentos. Quando os filhos cresceram, montou sua primeira banda de baile: El Presidente - que percorria os grotões do Rio Grande do Sul fazendo um "som da pesada" nas décadas de 60 e 70. Era o maestro e frontman, enquanto meus tios, Joel, Enio e Elenita (uma gatinha!), faziam o backvocal em algumas músicas.
Ainda lembro, em flash, de todos aqueles equipamentos vintage guardados na garagem de meu avô: guitarronas velhas e amplis da época. Não esqueço as reclamações da vó Joana quando a banda ensaiava em casa... O repertório era composto pelos sucessos da época: Roberto Carlos, Nélson Gonçalves, Beatles, boleros, marchinhas de carnaval, sambas-canções, ritmos cubanos, frevo e o que mais viesse à telha de meu avô.
Vô Carlos nunca deu um piu pra reclamar do que quer que fosse. De origem muito, mas muito pobre, contudo digna, ensinou a todos, sem nunca precisar ter de levantar a voz, o valor da calma e simplicidade. Em tempos de vacas magras, seu café-da-manhã de operário na fábrica de azulejos era a potente amálgama de leite com polenta - liga polaca à base de farinha de milho para encarar o duro trampo proletariado na fábrica.
Nos tempos das raras vacas magras lá em casa, minha mãe fez eu e meus irmãos, Marcelo & Ethel, comermos a famosa polenta com leite do saudoso avô. Às vezes faço isso só pra lembrar dele. É bom! Assim como tudo que não é complicado... Sempre que a mãe fazia a mistura, nos contava a história de seu valoroso pai. Coisa certa e sagrada. O respeitávamos muito. Vai ver que é por isso que Jack London foi o cara que foi. Passou fome. Soube respeitar o ter e o não-ter.
Nosso avô sempre ficava feliz com a presença dos netos, principalmente se lhes déssemos ouvidos. Idoso, sua memória permanecia um prodígio: resgatava histórias vetustas de amores antiqüíssimos que tivera no "tempo do Epa", traquinagens de moleque. Nos segredava como começara a dar seus primeiros acordes ao violão e os primeiros beijos roubados.
Contava suas aventuras de Huckleberry Finn e ficávamos apavorados com a mente do velho: eu mesmo já imaginava aquele pestinha sardento tocando violão nos matinhos de Santo Antônio da Patrulha, comendo rapadura e trovando umas minas atrás de alguma árvore...
Eu adolescente, meu avô tentou por dezenas de vezes ensinar-me seus métodos de violão. Desajeitado, jamais aprendi suas sofisticadas técnicas que ele, habilidoso instrumentista, tirava de ouvido, o desgraçado. Era um virtuose. Hoje, eu produziria o velhinho, com certeza. Ele, porém, jamais se cansava de me ensinar & ensinar & ensinar – sem jamais se irritar, nunca.
Gostava mesmo é dos velhos cantores, hoje esquecidos: Orlando Silva, Inezita Barroso, Tonico & Tinoco, Isaías & seus Chorões. Lembro que, bobalhão, ficava tentando fazê-lo entender os sons que estava descobrindo na época, coisas como Jimi Hendrix e David Bowie (!).
Ele sempre se dignava prestar atenção e apreciava, mesmo que algumas vezes o som apresentado era, de fato, uma bosta. No entanto, era eu quem não tinha tanta paciência assim, quando ele vinha me mostrar uma de suas velharias. Hoje, essa é a coisa de que mais me arrependo em nossa relação de neto & avô.
Por curto período, quando meu pai estava construindo sua casa, morei alguns meses com meu avô. Estava bem velhinho, mas sempre lúcido, até o final. Essa foi a oportunidade ímpar que tive de conversar geral com ele e ouvir todas as suas histórias & estórias. Escutei novamente, com a maior paciência, muitos relatos que já conhecia de cor e salteado.
Nunca esqueço o dia em que cheguei com mala e cuia na casinha de três cômodos dos meus avós, em Gravataí, para passar uma temporada. Fui recebido pela avó Joana. Meu avô estava de prosa na casa de um vizinho, tomando o adorado chimarrão.
Minha avó, com a rapidez de sua impressionante genética polaca, foi apressada chamá-lo. Ele veio correndo para me encontrar, na velocidade que a idade permitia: sabia que teria alguém com quem conversar sobre o (nosso) assunto predileto: música. Fiquei completamente emocionado com a visão de meu avô chegando pressuroso para me receber.
Quando adolescentes, eu e meu irmão juntamos uns trocados pra comprar uma bíblia nova pra ele, dedicado protestante, já que a sua estava completamente puída pelo uso. Foi um grande presente: o velho não escondeu a emoção. Por paralelismo, lembro de seus olhos marejados quando eu e Marcelo nos formamos no catecismo da Igreja Luterana, em Porto Alegre.
Meu avô tinha muita fé na vida e em Deus. Sabia que, quando morresse, seu encontro com uma força superior seria inevitável. Tenho certeza de que sua envergadura moral lhe garantiu boa colocação na senda do progresso espiritual.
Mas não escondia o medo. No finzinho, apavorava-se em noites de trovoadas, suspeitando que a morte desceria para levar-lhe pela mão ao outro mundo - um mundo melhor, mas desconhecido. Não morreu em meio a trovoadas: foi-se no dia do meu aniversário, um sábado estrelado, dormindo tranquilamente.
No espiritismo e em muitas religiões, o anjo-da-guarda é o guia que está profundamente ligado a nós por laços de afinidade espiritual. Nos guia em nossa evolução e nos proteje nos momentos difíceis. É o amigo constante e amoroso que Deus proporciona a todos os encarnados na árdua etapa terrena.
A doutrina espírita ensina que para se ter o auxílio do anjo-da-guarda basta mentalizar um ente querido que tenhamos em alta conta e nele busquemos ajuda e inspiração nas adversidades. Nas horas difíceis, mentalizo meu avô Carlos. E ele sempre vem ao meu socorro. É o meu herói - e os nossos heróis nunca deixam a gente na mão.
A imagem que ilustra o post é um fac-símile da desenhada pelos espíritos que ajudaram Allan Kardek a decodificar a doutrina. Simboliza o Espiritismo.

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